Cena I
Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome.
Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.

ANJO A cárrega t''embaraça.

SAPATEIRONom há mercê que me Deus faça?
Isto uxiquer irá.

ANJO Essa barca que lá está
Leva quem rouba de praça.
Oh! almas embaraçadas!

SAPATEIROOra eu me maravilho
haverdes por grão peguilho
quatro forminhas cagadas
que podem bem ir i chantadas
num cantinho desse leito!

ANJO Se tu viveras dereito,
Elas foram cá escusadas.

SAPATEIRO Assi que determinais
que vá cozer ò Inferno?

ANJO Escrito estás no caderno
das ementas infernais.
Torna-se à barca dos danados, e diz:

SAPATEIROHou barqueiros! Que aguardais?
Vamos, venha a prancha logo
e levai-me àquele fogo!
Não nos detenhamos mais!
Vem um Frade com üa Moça pela mão, e um broquel e üa espada na outra, e um casco debaixo
do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:

FRADE Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;
ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã:
tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!

DIABO Que é isso, padre?! Que vai lá?

FRADE Deo gratias! Som cortesão.

DIABO Sabês também o tordião?

FRADE Porque não? Como ora sei!

DIABO Pois entrai! Eu tangerei
e faremos um serão.
Essa dama é ela vossa?

FRADE Por minha la tenho eu,
e sempre a tive de meu,

DIABO Fezestes bem, que é fermosa!
E não vos punham lá grosa
no vosso convento santo?

FRADE E eles fazem outro tanto!

DIABO Que cousa tão preciosa...
Entrai, padre reverendo!

FRADE Para onde levais gente?

DIABO Pera aquele fogo ardente
que nom temestes vivendo.

FRADE Juro a Deus que nom t''entendo!
E este hábito no me val?

DIABO Gentil padre mundanal,
a Berzebu vos encomendo!

FRADE Corpo de Deus consagrado!
Pela fé de Jesu Cristo,
que eu nom posso entender isto!
Eu hei-de ser condenado?!...
Um padre tão namorado
e tanto dado à virtude?
Assi Deus me dê saúde,
que eu estou maravilhado!

DIABO Não curês de mais detença.
Embarcai e partiremos:
tomareis um par de ramos.

FRADE Nom ficou isso n''avença.

DIABO Pois dada está já a sentença!

FRADE Pardeus! Essa seria ela!
Não vai em tal caravela
minha senhora Florença.
Como? Por ser namorado
e folgar com üa mulher
se há um frade de perder,
com tanto salmo rezado?!...

DIABO Ora estás bem aviado!

FRADE Mais estás bem corregido!

DIABO Dovoto padre marido,
haveis de ser cá pingado...
Descobriu o Frade a cabeça, tirando o capelo; e apareceu o casco, e diz o Frade:

FRADE Mantenha Deus esta c''oroa!

DIABO ó padre Frei Capacete!
Cuidei que tínheis barrete...

FRADE Sabê que fui da pessoa!
Esta espada é roloa
e este broquel, rolão.

DIABO Dê Vossa Reverença lição
d''esgrima, que é cousa boa!
Começou o frade a dar lição d''esgrima com a espada e broquel, que eram d''esgrimir, e diz
desta maneira:

FRADE Deo gratias! Demos caçada!
Pera sempre contra sus!
Um fendente! Ora sus!
Esta é a primeira levada.
Alto! Levantai a espada!
Talho largo, e um revés!
E logo colher os pés,
que todo o al no é nada!
Quando o recolher se tarda
o ferir nom é prudente.
Ora, sus! Mui largamente,
cortai na segunda guarda!
- Guarde-me Deus d''espingarda
mais de homem denodado.
Aqui estou tão bem guardado
como a palhá n''albarda.
Saio com meia espada...
Hou lá! Guardai as queixadas!

DIABO Oh que valentes levadas!

FRADE Ainda isto nom é nada...
Demos outra vez caçada!
Contra sus e um fendente,
e, cortando largamente,
eis aqui sexta feitada.
Daqui saio com üa guia
e um revés da primeira:
esta é a quinta verdadeira.
- Oh! quantos daqui feria!...
Padre que tal aprendia
no Inferno há-de haver pingos?!...
Ah! Nom praza a São Domingos
com tanta descortesia!
Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo:

FRADE Vamos à barca da Glória!
Começou o Frade a fazer o tordião e foram dançando até o batel do
ANJO desta maneira:

FRADE Ta-ra-ra-rai-rã; ta-ri-ri-ri-rã;
rai-rai-rã; ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã.
Huhá!
Deo gratias! Há lugar cá
pera minha reverença?
E a senhora Florença
polo meu entrará lá!

PARVO Andar, muitieramá!
Furtaste esse trinchão, frade?

FRADE Senhora, dá-me à vontade
que este feito mal está.
Vamos onde havemos d''ir!
Não praza a Deus coa a ribeira!
Eu não vejo aqui maneira
senão, enfim, concrudir.

DIABO Haveis, padre, de viir.

FRADE Agasalhai-me lá Florença,
e compra-se esta sentença:
ordenemos de partir.
Tanto que o Frade foi embarcado, veio üa Alcoviteira, per nome Brízida Vaz, a qual chegando
à barca infernal, diz desta maneira:

BRÍZIDA Hou lá da barca, hou lá!

DIABO Quem chama?

BRÍZIDA Brízida Vaz.

DIABO E aguarda-me, rapaz?
Como nom vem ela já?

COMPANHEIRO Diz que nom há-de vir cá
sem Joana de Valdês.

DIABO Entrai vós, e remarês.

BRÍZIDA Nom quero eu entrar lá.

DIABO Que sabroso arrecear!

BRÍZIDA No é essa barca que eu cato.

DIABO E trazês vós muito fato?

BRÍZIDA O que me convém levar.
Día. Que é o que havês d''embarcar?

BRÍZIDA Seiscentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que nom podem mais levar.
Três almários de mentir,
e cinco cofres de enlheos,
e alguns furtos alheos,
assi em jóias de vestir,
guarda-roupa d''encobrir,
enfim - casa movediça;
um estrado de cortiça
com dous coxins d''encobrir.
A mor cárrega que é:
essas moças que vendia.
Daquestra mercadoria
trago eu muita, à bofé!

DIABO Ora ponde aqui o pé...

BRÍZIDA Hui! E eu vou pera o Paraíso!

DIABO E quem te dixe a ti isso?

BRÍZIDA Lá hei-de ir desta maré.
Eu sô üa mártela tal!...
Açoutes tenho levados
e tormentos suportados
que ninguém me foi igual.
Se fosse ò fogo infernal,
lá iria todo o mundo!
A estoutra barca, cá fundo,
me vou, que é mais real.
Chegando à Barca da Glória diz ao
ANJO:
Barqueiro mano, meus olhos,
prancha a Brísida Vaz.

ANJO: Eu não sei quem te cá traz...

BRÍZIDA Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,

ANJO de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,
a que criava as meninas
pera os cónegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perlinhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.
Santa Úrsula nom converteu
tantas cachopas como eu:
todas salvas polo meu
que nenhüa se perdeu.
E prouve Àquele do Céu
que todas acharam dono.
Cuidais que dormia eu sono?
Nem ponto se me perdeu!

ANJO Ora vai lá embarcar,
não estês importunando.

BRÍZIDA Pois estou-vos eu contando
o porque me haveis de levar.

ANJO Não cures de importunar,
que não podes vir aqui.

BRÍZIDA E que má-hora eu servi,
pois não me há-de aproveitar!...
Torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo:

BRÍZIDA Hou barqueiros da má-hora,
que é da prancha, que eis me vou?
E já há muito que aqui estou,
e pareço mal cá de fora.

DIABO Ora entrai, minha senhora,
e sereis bem recebida;
se vivestes santa vida,
vós o sentirês agora...
Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao
batel dos danados, diz:

JUDEU Que vai cá? Hou marinheiro!

DIABO Oh! que má-hora vieste!...

JUDEU Cuj''é esta barca que preste?

DIABO Esta barca é do barqueiro.

JUDEU. Passai-me por meu dinheiro.

DIABO E o bode há cá de vir?

JUDEU Pois também o bode há-de vir.

DIABO Que escusado passageiro!

JUDEU Sem bode, como irei lá?

DIABO Nem eu nom passo cabrões.

JUDEU Eis aqui quatro tostões
e mais se vos pagará.
Por vida do Semifará
que me passeis o cabrão!
Querês mais outro tostão?

DIABO Nem tu nom hás-de vir cá.

JUDEU Porque nom irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?

DIABO E o
FIDALGO, quem lhe deu...f

JUDEU O mando, dizês, do batel?
Corregedor, coronel,
castigai este sandeu!
Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el Deu, que te sacuda
coa beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!

PARVO Furtaste a chiba cabrão?
Parecês-me vós a mim
gafanhoto d''Almeirim
chacinado em um seirão.

DIABO Judeu, lá te passarão,
porque vão mais despejados.

PARVO E ele mijou nos finados
n''ergueja de São Gião!
E comia a carne da panela
no dia de Nosso Senhor!
E aperta o salvador,
e mija na caravela!

DIABO Sus, sus! Demos à vela!
Vós, Judeu, irês à toa,
que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela!
Vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na
mão, diz:

CORREGEDOR Hou da barca!

DIABO Que quereis?

CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz?

DIABO Oh amador de perdiz.
gentil cárrega trazeis!

CORREGEDOR No meu ar conhecereis
que nom é ela do meu jeito.

DIABO Como vai lá o direito?

CORREGEDOR Nestes feitos o vereis.

DIABO Ora, pois, entrai. Veremos
que diz i nesse papel...

CORREGEDOR E onde vai o batel?

DIABO No Inferno vos poeremos.

CORREGEDOR Como? À terra dos demos
há-de ir um corregedor?

DIABO Santo descorregedor,
embarcai, e remaremos!
Ora, entrai, pois que viestes!

CORREGEDOR Non est de regulae juris, não!

DIABO Ita, Ita! Dai cá a mão!
Remaremos um remo destes.
Fazei conta que nacestes
pera nosso
COMPANHEIRO.
- Que fazes tu, barzoneiro?
Faze-lhe essa prancha prestes!

CORREGEDOR Oh! Renego da viagem
e de quem me há-de levar!
Há ''qui meirinho do mar?

DIABO Não há tal costumagem.

CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem,
nem hoc nom potest esse.

DIABO Se ora vos parecesse
que nom sei mais que linguagem...
Entrai, entrai, corregedor!

CORREGEDOR Hou! Videtis qui petatis -
Super jure magestatis
tem vosso mando vigor?

DIABO Quando éreis ouvidor
nonne accepistis rapina?
Pois ireis pela bolina
onde nossa mercê for...
Oh! que isca esse papel
pera um fogo que eu sei!

CORREGEDOR Domine, memento mei!

DIABO Non es tempus, bacharel!
Imbarquemini in batel
quia Judicastis malitia.

CORREGEDOR Sempre ego justitia
fecit, e bem por nivel.

DIABO E as peitas dos judeus
que a vossa mulher levava?

CORREGEDOR Isso eu não o tomava
eram lá percalços seus.
Nom som pecatus meus,
peccavit uxore mea.

DIABO Et vobis quoque cum ea,
não temuistis Deus.
A largo modo adquiristis
sanguinis laboratorum
ignorantis peccatorum.
Ut quid eos non audistis?

CORREGEDOR Vós, arrais, nonne legistis
que o dar quebra os pinedos?
Os direitos estão quedos,
sed aliquid tradidistis...

DIABO Ora entrai, nos negros fados!
Ireis ao lago dos cães
e vereis os escrivães
como estão tão prosperados.

CORREGEDOR E na terra dos danados
estão os Evangelistas?

DIABO Os mestres das burlas vistas
lá estão bem fraguados.
Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais infernal chegou um Procurador, carregado
de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:

CORREGEDOR Ó senhor Procurador!

PROCURADOR Bejo-vo-las mãos, Juiz!
Que diz esse arrais? Que diz?

DIABO Que serês bom remador.
Entrai, bacharel doutor,
e ireis dando na bomba.

PROCURADOR E este barqueiro zomba...
Jogatais de zombador?
Essa gente que aí está
pera onde a levais?

DIABO Pera as penas infernais.

PROCURADOR Dix! Nom vou eu pera lá!
Outro navio está cá,
muito milhor assombrado.

DIABO Ora estás bem aviado!
Entra, muitieramá!

CORREGEDOR Confessaste-vos, doutor?

PROCURADOR Bacharel som. Dou-me à Demo!
Não cuidei que era extremo,
nem de morte minha dor.
E vós, senhor Corregedor?

CORREGEDOR Eu mui bem me confessei,
mas tudo quanto roubei
encobri ao confessor...
Porque, se o nom tornais,
não vos querem absolver,
e é mui mau de volver
depois que o apanhais.

DIABO Pois porque nom embarcais?

PROCURADOR Quia speramus in Deo.

DIABO Imbarquemini in barco meo...
Pera que esperatis mais?
Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz o Corregedor ao
ANJO:

CORREGEDOR Ó arrais dos gloriosos,
passai-nos neste batel!

ANJO Oh! pragas pera papel,
pera as almas odiosos!
Como vindes preciosos,
sendo filhos da ciência!

CORREGEDOR Oh! habeatis clemência
e passai-nos como vossos!

PARVO Hou, homens dos breviairos,
rapinastis coelhorum
et pernis perdigotorum
e mijais nos campanairos!

CORREGEDOR Oh! não nos sejais contrairos,
pois nom temos outra ponte!

PARVO Belequinis ubi sunt?
Ego latinus macairos.
++++Obra


ANJO A justiça divinal
vos manda vir carregados
porque vades embarcados
nesse batel infernal.

CORREGEDOR Oh! nom praza a São Marçal!
coa ribeira, nem co rio!
Cuidam lá que é desvario
haver cá tamanho mal!

PROCURADOR Que ribeira é esta tal!

PARVO Parecês-me vós a mi
como cagado nebri,
mandado no Sardoal.
Embarquetis in zambuquis!

CORREGEDOR Venha a negra prancha cá!
Vamos ver este segredo.

PROCURADOR Diz um texto do Degredo...

DIABO Entrai, que cá se dirá!
E Tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor a Brízida Vaz, porque a
conhecia:

CORREGEDOR Oh! esteis muitieramá,
senhora Brízida Vaz!

BRÍZIDA Já siquer estou em paz,
que não me leixáveis lá.
Cada hora sentenciada:
«Justiça que manda fazer....»

CORREGEDOR E vós... tornar a tecer
e urdir outra meada.

BRÍZIDA Dizede, juiz d''''alçada:
vem lá Pêro de Lixboa?
Levá-lo-emos à toa
e irá nesta barcada.
Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal-aventurados, disse o
Arrais, tanto que chegou:

DIABO Venhais embora, enforcado!
Que diz lá Garcia Moniz?

ENFORCADO Eu te direi que ele diz:
que fui bem-aventurado
em morrer dependurado
como o tordo na buiz,
e diz que os feitos que eu fiz
me fazem canonizado.

DIABO Entra cá, governarás
atá as portas do Inferno.

ENFORCADO Nom é essa a nau que eu governo.

DIABO Mando-te eu que aqui irás.

ENFORCADO Oh! nom praza a Barrabás!
Se Garcia Moniz diz
que os que morrem como eu fiz
são livres de Satanás...
E disse que a Deus prouvera
que fora ele o enforcado;
e que fosse Deus louvado
que em bo''''hora eu cá nacera;
e que o Senhor m''''escolhera;
e por bem vi beleguins.
E com isto mil latins,
mui lindos, feitos de cera.
E, no passo derradeiro,
me disse nos meus ouvidos
que o lugar dos escolhidos
era a forca e o Limoeiro;
nem guardião do moesteiro
nom tinha tão santa gente
como Afonso Valente
que é agora carcereiro.

DIABO Dava-te consolação
isso, ou algum esforço?

ENFORCADO Com o baraço no pescoço,
mui mal presta a pregação...
E ele leva a devação
que há-de tornar a jentar...
Mas quem há-de estar no ar
avorrece-lhe o sermão.

DIABO Entra, entra no batel,
que ao Inferno hás-de ir!

ENFORCADO O Moniz há-de mentir?
Disse-me que com São Miguel
jentaria pão e mel
tanto que fosse enforcado.
Ora, já passei meu fado,
e já feito é o burel.
Agora não sei que é isso:
não me falou em ribeira,
nem barqueiro, nem barqueira,
senão - logo ò Paraíso.
Isto muito em seu siso.
e era santo o meu baraço...
Eu não sei que aqui faço:
que é desta glória emproviso?

DIABO Falou-te no Purgatório?

ENFORCADO Disse que era o Limoeiro,
e ora por ele o salteiro
e o pregão vitatório;
e que era mui notório
que àqueles deciprinados
eram horas dos finados
e missas de São Gregório.

DIABO Quero-te desenganar:
se o que disse tomaras,
certo é que te salvaras.
Não o quiseste tomar...
- Alto! Todos a tirar,
que está em seco o batel!
- Saí vós, Frei Babriel!
Ajudai ali a botar!
Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor
e acrecentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena
per privilégio que os que assi morrem têm dos mistérios da Paixão d''''Aquele por Quem padecem,
outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assi
cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

CAVALEIROS À barca, à barca segura,
barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Senhores que trabalhais
pola vida transitória,
memória , por Deus, memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais,
Barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Vigiai-vos, pecadores,
que, depois da sepultura,
neste rio está a ventura
de prazeres ou dolores!
À barca, à barca, senhores,
barca mui nobrecida,
à barca, à barca da vida!
E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando, com suas espadas e
escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:

DIABO Cavaleiros, vós passais
e nom perguntais onde is?
1º CAVALEIRO Vós, Satanás, presumis?
Atentai com quem falais!
2º CAVALEIRO Vós que nos demandais?
Siquer conhecê-nos bem:
morremos nas Partes d''''Além,
e não queirais saber mais.

DIABO Entrai cá! Que cousa é essa?
Eu nom posso entender isto!

CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo
não vai em tal barca como essa!
Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e, tanto que chegam,
diz o
ANJO:

ANJO Ó cavaleiros de Deus,
a vós estou esperando,
que morrestes pelejando
por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo mal,
mártires da Santa Igreja,
que quem morre em tal peleja
merece paz eternal.
E assi embarcam.
Cena II


ANJO A justiça divinal
vos manda vir carregados
porque vades embarcados
nesse batel infernal.

CORREGEDOR Oh! nom praza a São Marçal!
coa ribeira, nem co rio!
Cuidam lá que é desvario
haver cá tamanho mal!

PROCURADOR Que ribeira é esta tal!

PARVO Parecês-me vós a mi
como cagado nebri,
mandado no Sardoal.
Embarquetis in zambuquis!

CORREGEDOR Venha a negra prancha cá!
Vamos ver este segredo.

PROCURADOR Diz um texto do Degredo...

DIABO Entrai, que cá se dirá!
E Tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor a Brízida Vaz, porque a
conhecia:

CORREGEDOR Oh! esteis muitieramá,
senhora Brízida Vaz!

BRÍZIDA Já siquer estou em paz,
que não me leixáveis lá.
Cada hora sentenciada:
«Justiça que manda fazer....»

CORREGEDOR E vós... tornar a tecer
e urdir outra meada.

BRÍZIDA Dizede, juiz d''alçada:
vem lá Pêro de Lixboa?
Levá-lo-emos à toa
e irá nesta barcada.
Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal-aventurados, disse o
Arrais, tanto que chegou:

DIABO Venhais embora, enforcado!
Que diz lá Garcia Moniz?

ENFORCADO Eu te direi que ele diz:
que fui bem-aventurado
em morrer dependurado
como o tordo na buiz,
e diz que os feitos que eu fiz
me fazem canonizado.

DIABO Entra cá, governarás
atá as portas do Inferno.

ENFORCADO Nom é essa a nau que eu governo.

DIABO Mando-te eu que aqui irás.

ENFORCADO Oh! nom praza a Barrabás!
Se Garcia Moniz diz
que os que morrem como eu fiz
são livres de Satanás...
E disse que a Deus prouvera
que fora ele o enforcado;
e que fosse Deus louvado
que em bo''hora eu cá nacera;
e que o Senhor m''escolhera;
e por bem vi beleguins.
E com isto mil latins,
mui lindos, feitos de cera.
E, no passo derradeiro,
me disse nos meus ouvidos
que o lugar dos escolhidos
era a forca e o Limoeiro;
nem guardião do moesteiro
nom tinha tão santa gente
como Afonso Valente
que é agora carcereiro.

DIABO Dava-te consolação
isso, ou algum esforço?

ENFORCADO Com o baraço no pescoço,
mui mal presta a pregação...
E ele leva a devação
que há-de tornar a jentar...
Mas quem há-de estar no ar
avorrece-lhe o sermão.

DIABO Entra, entra no batel,
que ao Inferno hás-de ir!

ENFORCADO O Moniz há-de mentir?
Disse-me que com São Miguel
jentaria pão e mel
tanto que fosse enforcado.
Ora, já passei meu fado,
e já feito é o burel.
Agora não sei que é isso:
não me falou em ribeira,
nem barqueiro, nem barqueira,
senão - logo ò Paraíso.
Isto muito em seu siso.
e era santo o meu baraço...
Eu não sei que aqui faço:
que é desta glória emproviso?

DIABO Falou-te no Purgatório?

ENFORCADO Disse que era o Limoeiro,
e ora por ele o salteiro
e o pregão vitatório;
e que era mui notório
que àqueles deciprinados
eram horas dos finados
e missas de São Gregório.

DIABO Quero-te desenganar:
se o que disse tomaras,
certo é que te salvaras.
Não o quiseste tomar...
- Alto! Todos a tirar,
que está em seco o batel!
- Saí vós, Frei Babriel!
Ajudai ali a botar!
Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor
e acrecentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena
per privilégio que os que assi morrem têm dos mistérios da Paixão d''Aquele por Quem padecem,
outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assi
cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

CAVALEIROS À barca, à barca segura,
barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Senhores que trabalhais
pola vida transitória,
memória , por Deus, memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais,
Barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Vigiai-vos, pecadores,
que, depois da sepultura,
neste rio está a ventura
de prazeres ou dolores!
À barca, à barca, senhores,
barca mui nobrecida,
à barca, à barca da vida!
E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando, com suas espadas e
escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:

DIABO Cavaleiros, vós passais
e nom perguntais onde is?
1º CAVALEIRO Vós, Satanás, presumis?
Atentai com quem falais!
2º CAVALEIRO Vós que nos demandais?
Siquer conhecê-nos bem:
morremos nas Partes d''Além,
e não queirais saber mais.

DIABO Entrai cá! Que cousa é essa?
Eu nom posso entender isto!

CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo
não vai em tal barca como essa!
Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e, tanto que chegam,
diz o
ANJO:

ANJO Ó cavaleiros de Deus,
a vós estou esperando,
que morrestes pelejando
por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo mal,
mártires da Santa Igreja,
que quem morre em tal peleja
merece paz eternal.
E assi embarcam.